segunda-feira, 25 de maio de 2009

As histórias em quadrinhos como fonte de investigação e documentação histórica: Uma análise textual e visual da obra Mafalda, de Quino!

E já dizia o velho ditado:

”Uma imagem vale mais que mil palavras”

E é com o propósito de esmiuçar essa importância que a imagem tem para a comunicação e compreensão da sociedade e pelo ser humano em geral que analisarei as histórias em quadrinhos do ponto de vista histórico-cultural, tanto como promotoras de ideologias que cercam o imaginário popular, sejam elas utilizadas como fonte de pesquisa histórica ou como arquivo documental de sua época.

As histórias em quadrinhos tiveram a sua origem no início do século XX, quando, aliadas a busca de novas formas de se produzir e fazer comunicação ao conceito de Mass media[1] e a conseqüente modernização dos meios de produção de comunicação, tais como a tipologia, os materiais usados, ETC se incorporaram à sociedade de maneira definitiva e irreversível.

As histórias em quadrinhos possuem uma característica própria que lhes é muito peculiar e persiste até hoje, o uso de “balões”, que é onde os textos, ou seja, as falas dos personagens são inseridas. De acordo com JARCEM (2007):

“Entre os precursores estão o suíço Rudolph Töpffer, o alemão Wilhelm Bush, o francês Georges ("Christophe") Colomb, e o brasileiro Ângelo Agostini. Alguns consideram como a primeira história em quadrinhos a criação de Richard Fenton Outcalt, The Yellow Kid em 1896. Outcalt essencialmente sintetizou o que tinha sido feito antes dele e introduziu um novo elemento: o balão. Este é o local onde se põe as falas das personagens.”

Porém, esta característica não deve ser erroneamente levada a cabo sempre que nos depararmos com uma HQ[2], pois muitas vezes a HQ se utiliza muito mais da imagem do que dos textos para propor a compreensão da história, pois O conceito de história em quadrinhos é amplo e diversificado por possuir variadas formas de linguagem e interpretação à sua constituição. Em uma HQ, imagem e narrativa se unem formando um meio de comunicação singular, que traz diversas perspectivas de compreensão, dependendo do público que as lêem (Espaço e tempo na arquitetura e HQ, 2009).

Dessa forma, fica muito evidente que as HQ’s são muito mais do que uma mera junção de texto e imagem, é um meio singular e único, e carregado das influências do instrumental intelectual da época, pois segundo JARCEM Apud DUTRA (2007):

“As Histórias em Quadrinhos, como todas as formas de arte, fazem parte do contexto histórico e social que as cercam. Elas não surgem isoladas e isentas de influências. Na verdade, as ideologias e o momento político moldam, de maneira decisiva, até mesmo o mais descompromissado dos gibis (...)”.

É exatamente sobre esta característica que desenvolverei o meu trabalho, pois se nem mesmo o mais descompromissado dos gibis pode escapar das influências e do momento político em que está inserida, ela pode se tornar um ótimo referencial de pesquisa e documentação histórica de sua época, a exemplo da música, do teatro, do cinema e de outras manifestações artísticas.

Em um contexto sociocultural, a década de 1920, que é quando as HQ’s surgem, está em uma efervescência altíssima, com o advento da modernidade, com as fábricas e suas novas formas de produção (com o modelo Fordista de linhas de produção), a recém-saída de um conflito de proporções nunca antes vistas no mundo, o desenvolvimento de uma burguesia fortemente amparada pelo poder do capital e uma valorização ao conhecimento técnico. Já no campo cultural, há uma constante massificação dos meios de propagação de cultura, variantes e gêneros culturais surgindo como produtos saindo de fábricas e uma constante massificação dos meios já existentes, com o capital tomando de assalto a cultura, transformando-a em produto gerador de lucro. A cultura torna-se produto facilmente produzido e descartado em uma sociedade que vai perdendo a sua individualidade para se concentrar em um modelo “médio” e homogêneo. A cultura perde o seu status de questionadora da realidade e objeto de fruição e passa a ser mais um produto a ser consumido, mais uma idéia que o capital apropriou para a manutenção de seu domínio e propagação de sua ideologia.

O uso de instrumentos culturais para influenciar o instrumental intelectual da época desenvolveu-se bastante no início do século XX, com o advento do rádio, a popularização dos jornais e o surgimento das HQ’s, pois com isso, poderia se facilmente incorporar conceitos, idéias, atitudes e outras formas de manipulação a uma cada vez maior sociedade, faminta de entretenimento e informação. É de fundamental importância que se leve em consideração tudo isso quando falamos de processos influenciatórios, pois segundo WOLF (1999):

“(...) a eficácia dos mass media só é susceptível de ser analisada no contexto social em que funcionam. Mais ainda do que do conteúdo que difundem, a sua influência depende das características do sistema social que os rodeia. Os efeitos provocados pelos meios de comunicação de massa «dependem das forças sociais que predominam num determinado período» (Lazarsfeld, 1940, 330). Por conseguinte, a teoria dos efeitos limitados deixa de salientar a relação causal directa entre propaganda de massas e manipulação da audiência para passar a insistir num processo indirecto de influência em que as dinâmicas sociais se intersectam com os processos comunicativos”.

É a partir desse período que a influência das HQ’s [e de outras formas de mass media] sobre o imaginário popular começa a tomar forma, principalmente nos períodos de Guerras, quando o “super herói”, com seus super poderes e honestidade, passa a se sacrificar para “defender a liberdade e a democracia”, ainda que estas duas sejam apenas uma visão de si própria que a sociedade construiu. Quando a partir de um “híbrido” marinho, fica evidente a preocupação com a destruição do meio ambiente e a necessidade de haver um “guardião” para protegê-la.

Contextualmente, o uso das HQ’s e outras manifestações artísticas e mesmo textos de outras disciplinas humanas ou exatas como fonte histórica só começou a ser aceito após o advento da “Nova história”, a partir de 1929, quando Lucien Febvre e Marc Bloch fundaram a Revista dos Annales (Annales d’histoire économique e sociale). Os dois autores eram radicalmente contra o modelo de historiografia proposto e aceito até então, em que dominavam o contexto político e econômico apenas, além do uso de fontes estritamente documentais e oficiais, além de um subjetivismo gritante. Propunham como alternativa um modelo de história-problema, em que as fontes deveriam ser buscadas e interpretadas a partir das hipóteses do próprio historiador. A partir desse movimento, chamado de “Nova história”, absolutamente toda a produção humana, sendo cultural, econômica, mental, artística, ETC passou a ser considerado como possível fonte histórica e natural contador da história de seu tempo. Mas somente em 1974, com a publicação de Jacques Le Goff e Pierre Nora de “Faire l’histoire”, um compêndio de autores preocupados com os novos objetos e problemas da nova história é que a diversidade de objetos de valor documental para a historiografia foi amplamente divulgada. No trabalho em questão poderiam ser encontrados trabalhos sobre o clima, o inconsciente, o mito, o cotidiano, as mentalidades, a língua: Lingüística e história, livro, jovens e crianças, saúde e doenças, opinião pública, cozinha, cinema, festa, Além de uma determinação interdisciplinar de suas perspectivas, com mapas metereológicos, processos químicos, documentos de ministérios da agricultura, relatos de incêndios, cartas sobre catástrofes climáticas do passado, diários, biografias, romances, estudos psicanalíticos, psicologia da arte, releitura dos clássicos greco-romanos, o discurso mítico, antropologia cultural, culto de santos, doutrinas religiosas, livros pornográficos e clandestinos, estatísticas de publicações diversas, ilustrações, caricaturas, jornais, manuais de bons hábitos, fotografias, literatura médica, receituários, dietas alimentares, documentos de ministérios da saúde sobre epidemias, escrituração de estabelecimentos voltados ao abastecimento, contas da assistência pública, estudos de biologia, cardápios de hospitais e listas de compra, menus de restaurantes, arte culinária, utensílios de serviços de mesa, sondagens de opinião pública, depoimentos orais, filmes mudos, sonoros e coloridos, filmes de propaganda política, festas de loucos, fantasias, comemorações nacionais, bailes, cores, programas de festas públicas e particulares, homenagens, músicas, celebrações religiosas, discursos, trajes especiais e uma infinidade de outros mais.(JANOTTI, Maria de Lourdes, 2009).

Ao longo da sua trajetória na sociedade, as HQ’s muitas vezes tiveram papel importante no instrumental intelectual popular, seja como forma de levantar o moral da mesma, como forma de retratar o mundo ideal a que a mesma desejava ou para escapar da realidade cruel que os assolava, sempre com gêneros e subgêneros que alimentavam o imaginário popular a partir dos seus anseios na época, como no caso do CRACK da bolsa de valores, em 1929 nos USA, em que as HQ’s cresceram, principalmente nos gêneros de ficção científica, policial e as aventuras na selva. Já a partir das décadas seguintes, a partir dos anseios da sociedade, novos gêneros e subgêneros foram surgindo e sendo lançados continuamente em um processo que perdura até atualmente.

A influência das HQ’s e dos outros massmedia se desenvolveu bastante, em parte por conta de um fenômeno social que tomou forma com o advento da revolução industrial e da sua conseqüente massificação e padronização da produção humana, principalmente no ocidente. Esse fenômeno, que é chamado de indústria cultural está intimamente ligado à história da comunicação e também do entretenimento desde o final do século XIX. Tomando como exemplo o desenvolvimento acelerado da indústria de bens de consumo após a revolução industrial, outros setores da sociedade baseada no sistema capitalista passaram a se aproveitar do modelo bem sucedido de padronização proposto pelas novas linhas de produção fordistas e, discretamente passaram a adotar o mesmo em suas respectivas áreas de produção. A sutileza com a qual estes modelos foram incorporados se baseia principalmente no fato de que tal “manobra” é entendida por quase a totalidade da sociedade como um acontecimento “natural”, o que não acontece, embora tenha uma parcela de participação na produção da indústria cultural, a sociedade com o passar dos tempos passou de principal produtora a mera espectadora, conforme ADORNO (2009) explica no trecho a seguir:

“(...) se trata de algo como uma cultura surgindo espontaneamente das próprias massas, em suma, da forma contemporânea da arte popular. Ora, dessa arte a indústria cultural se distingue radicalmente. Ao juntar elementos de há muito recorrentes ela atribui-lhes uma nova qualidade. Em todos os seus ramos fazem-se, mais ou menos, segundo um plano, produtos adaptados ao consumo das massas e que em grande medida determinam esse consumo. Os diversos ramos assemelham-se por sua estrutura, ou pelo menos ajustam-se uns aos outros. Eles somam-se quase sem lacuna para constituir um sistema. Isso, graças tanto aos meios atuais da técnica, quanto a concentração econômica e administrativa. A indústria cultural é a integração deliberada, a partir do alto, de seus consumidores. Ela força a união dos domínios, separados há milênios, da arte superior e da arte inferior. Com prejuízo de ambos. A arte superior se vê frustrada de sua seriedade pela especulação sobre o efeito; A inferior perde, através de sua domesticação civilizadora, o elemento de natureza resistente e rude, que lhe era inerente enquanto controle social não era total. Na medida em que nesse processo a indústria cultural inegavelmente especula sobre o estado de consciência e inconsciência de milhões de pessoas às quais ela se dirige, as massas não são, então, o fator primeiro, mas um elemento secundário, um elemento de cálculo; Acessório da maquinaria. O consumidor não é rei, como a indústria cultural gostaria de se fazer crer, ele não é o sujeito dessa indústria, mas seu objeto.

A partir da década de 1930 os quadrinhos também passaram a atrair também a atenção política, pois com o lançamento de Superman em 1938, o primeiro Super-herói com identidade secreta e super poderes, às vésperas da segunda guerra mundial, fervilharam contraposições sobre o mesmo, segundo JARCEM (2007):

“(...) Quando superman surgiu em cena foi logo colhido pela confusão vigente. As pessoas de esquerda no mundo inteiro, desde o princípio, acusaram-no de ser símbolo do imperialismo norte-americano e, de quebra, da arrogância fascista. Já os políticos linha dura do Partido Republicano viram nele a personificação do tal superman nazista. Nas palavras dos assessores de Hitler, o Superman não passava de um judeu.”

Esta confusão retrata bem a penetração das HQ’s no universo imaginário popular, pois a sociedade norte-americana chegar ao ponto de condenar uma criação fictícia como modelo de influência e apoio a uma ação política levada a cabo por outro país com um oceano inteiro de distância em tempos de guerra só pode significar a penetração profunda que este tipo de história conseguiu no seio da sociedade, assim como outras formas de entretenimento da época, tais como o cinema, o rádio e, ainda timidamente, a televisão. As autoridades já nessa época sabiam do potencial de influência das HQ’s e a utilizaram de forma abrangente para elevar o moral de seus soldados e do povo, principalmente após a entrada dos USA na segunda guerra mundial.

Já na década seguinte, os quadrinhos sofreram um duro golpe, pois o lançamento de “A sedução do inocente”, do psiquiatra alemão Frederic Wetham, que argumentava sobre o “verdadeiro intento subversivo” dos quadrinhos, acusando-os de subversão juvenil, incitação à violência, corrupção e delinqüência juvenis, além do “sadomasoquismo” e “homossexualismo[3]” que, segundo o autor, permeavam vários dos personagens mais famosos da época. O estrago estava feito e HQ’s passaram a ser queimadas em praça pública e vários protestos realizados contra essa forma de comunicação de massas. Dessa forma a indústria de HQ’s temendo uma possível intervenção do governo, criou um “selo de ética”, em que regulamentaria as “ações” das HQ’s, como não mais aparecer à palavra crime nas capas, o bem sempre vencer o mal no final, não conter nenhuma referência negativa as autoridades, dentre outros absurdos. A tentativa deu certo e nenhuma intervenção ocorreu. Paralelamente a isso, na Europa, as HQ’s gozavam de liberdade e produziam histórias sobre todos os aspectos. Já no próprio USA, surgiu uma indústria underground, que continuou publicando histórias que iam de encontro ao tal “código de ética” dos quarinhos até então. Nesse turbilhão, com o lançamento em uma tira de jornal “Peanuts” (na versão traduzida para o português, ficou conhecido como A turma do Charlie Brown), de Charles M. Schulz. Uma HQ sobre um grupo de crianças em que o principal personagem, Charlie Brown é um menino inseguro, perdedor nato que simboliza a inocência, a falta de atitude e a ingenuidade, em contraste com essas características temos Snoopy, o cão de Charlie Brown, um beagle filosófico que fica a maioria do tempo em cima de sua casa vermelha. Pode-se dizer que, a partir de Peanuts chegou à era dos quadrinhos intelectuais, quando houve uma atenção maior aos textos do que as imagens.

Na década de 1950, os quadrinhos passaram a retratar (e influenciar) as pessoas sobre o “medo” tão recorrente no pós-guerra, a ameaça nuclear, a guerra fria e os “comunistas comedores de criancinhas” tomaram conta tanto da sociedade como das HQ’s, com histórias do Capitão América voltadas para combater os comunistas e outros elementos mais sutis, como Namor combatendo foices e martelos aquáticos. Tudo isso para atacar qualquer tentativa soviética contra o “American Way of Life”, principalmente após o término da guerra e a polarização das forças mundiais nas duas grandes potências.

Já a partir da década de 1960 tem-se início a “Era de prata” dos quadrinhos, com a popularização dos super-heróis com super poderes e identidades secretas, além do retorno de muitos dos personagens da “Era de ouro”, como mulher-maravilha, Superman, Batman entre outros. É nessa época que surge o Quarteto fantástico, criação de Kack Kirby e Stan Lee. O quarteto é uma obra que rompe com todos os paradigmas das HQ’s de super-heróis até então, pois os membros não possuem identidade secreta, são uma família e o principal mentor, Reed Richards prefere muitas vezes usar o intelecto aos super poderes (a exemplo do Batman, mas nesse caso o “homem morcego” não possui super poderes, apenas um infinito arsenal de equipamentos e armamentos). O quarteto fantástico foi uma das armas dos USA durante a guerra fria, principalmente durante a corrida espacial. O Quarteto Fantástico foi à resposta dos quadrinhos ao apelo do dirigente da nação. Eles personificavam a nova era espacial, na qual seus heróis estavam dispostos a arriscar tudo, até mesmo à própria vida, para estar a um passo adiante da ameaça vermelha. Já na primeira edição de Fantastic Four, Sue Storm não poupa esforços para persuadir o relutante Ben Grimm a pilotar o foguete desenvolvido por seu amigo Reed Richards. “Ben, nós temos que tentar! A não ser que você queira que os comunistas cheguem à frente”. (JARCEM, 2009)

Paralelamente a isso e, aproveitando-se do sucesso do quarteto, surge uma infinidade de novos heróis, alguns em “atividade” até hoje, sendo os casos mais notórios: O homem-aranha, Hulk, Thor, Homem de ferro, X-men, ETC. Alguns mostrando os “perigos” da radiatividade, como no caso do Hulk e do Homem-aranha, outros mostrando o efeito das inovações tecnológicas, como o Homem de ferro e outros sobre alterações biológicas, como no caso dos X-men, ainda se tem a busca da interferência divina sobre a sociedade, como no caso de Thor.

Na década de 1970 surge uma verdadeira indústria dos quadrinhos underground com o lançamento de vários títulos vendidos em “head-shops” e de mão em mão. A mais representativa obra dessa década se chama Metal Hurlant e é criação de vários autores franceses sob o pseudônimo de Les humanöides associèes. Tal revista chegou a América com o título de Heavy Metal e misturava uma verdadeira gama de estilos e gêneros como uma diagramação nova, literatura, corpos nus, ficção científica, viagens psicodélicas e Rock n Roll.

A década de 1980 por sua vez, ficou marcada pela criação das Graphic novels (ou romance adulto) direcionado ao público adulto, tendo como maior destaque a obra Batman, o cavaleiro das trevas, de Frank Miller. Obra que explorava os conflitos existenciais do Homem morcego e o colocava em um novo patamar de desenvolvimento, além de super heróis, outros tipos de histórias foram publicadas como graphic novels, dentre as de maior destaque estão Whatchmen de David Gibbons e Alan Moore e Sandman, de Neil Gaiman, que revolucionou a forma de se fazer quadrinhos com volumes que são verdadeiras obras de arte, ilustradas por renomados artistas contemporâneos, textos densos e recheados de literatura e várias referências ao mundo atual. Essa nova forma de quadrinhos continua sendo a mais popular hoje em dia, com milhões de cópias vendidas atualmente.

As décadas de 1990 e 2000 marcaram respectivamente, uma separação dos grandes desenhistas das grandes editoras de quadrinhos, alguns deles criando a “Image comics”. A partir dessa década se pode notar a influência da computação nas criações, com a colorização feita no computador, além da influência do estilo japonês de quadrinhos, o Manga. Após os ataques de 11 de Setembro de 2001 tanto os roteiristas quanto os desenhistas de HQ’s resolveram praticar uma volta às origens, principalmente á era de prata, de meados da década de 1980, tanto no estilo de desenho como nos roteiros.

Fato consumado é o de que as histórias em quadrinhos exercem grande fascínio sobre o imaginário popular, pois é fruto das necessidades e da criatividade da mesma. Independentemente de visões políticas, influências ideológicas ou movimentos econômicos, elas refletem também o momento histórico-político-social em que a sociedade está inserida, seja na forma de uma ficção, seja na forma de um documentário sobre determinada realidade, uma biografia, dentre tantas outras formas, o fato é que as HQ’s se transformaram além de brincadeira de crianças, em um documento importante do relato social e cultural de sua época.

Como exemplo, posso citar as várias aparições do recém-eleito 47° presidente dos USA, o Sr. Barack Obama, que ilustrou uma edição exclusiva ao lado do Homem-aranha e apareceu até em mangá erótico japonês, fato este que revela a grande popularidade do primeiro presidente afro-descendente eleito por vias democráticas na maior potência mundial e, de certa forma, representante direto da esperança de uma relação mais próxima e democrática desse país com o restante do mundo.

Uma obra que condensa bem todos esses aspectos, aliados a contestação do mundo e da crítica ácida aos modelos, tanto sociais, como políticos e econômicos é a Mafalda, do quadrinista argentino Joaquín Salvador Lavado, mais conhecido como Quino.

A obra Mafalda, surgiu em um período bastante tenso da história contemporânea, a década de 1960, com as suas revoluções, sua busca por liberdade, tanto sexual, como de expressão, a luta contra o “perigoso comunismo”, a luta contra as ditaduras, pois conforme JUVA (2006):

Tempos de exceção propiciam o aparecimento de arranjos sociais e criações artísticas ímpares. A década de 1960 parece ter sido a época que mais materializou essa máxima. A contracultura na América do Norte deu um salto por sobre os muros do conformismo e da tradição. Em pouco tempo vimos surgir o sexo livre, o movimento hippie, a literatura beat, o consumo de drogas para a expansão da consciência, as lutas pelos direitos civis, etc. As margens começaram a dar uma expressão artística e social para os anseios de liberdade e criatividade. Personas marcantes surgiram nessa época, como Jimi Hendrix, Allen Ginsberg, Malcom X, Martin Luther King. Na América do Sul, grassava o espírito das ditaduras e o desejo “facistoíde” de engendrar povos “fortes” e livres da “ameaça” comunista. Mas a alma libertária também tinha seus espaços. O suficiente para que em 29 de setembro de 1964, surgisse na argentina uma menininha que encantaria o mundo e permaneceria até hoje como símbolo de contestação e liberdade. Seu nome? Mafalda, uma garota de seis anos, que surge para colocar o mundo de ponta-cabeça. Ela aparece para desconstruir as visões conservadoras sobre a política, moral, econômica, cultural.

Mafalda é uma menina de seis anos em sua constante guerra contra o mundo convencional. Adotando uma postura radical contra as guerras, as armas nucleares, a injustiça em geral, o racismo e com a sopa, ela vai de encontro às convenções dos adultos e busca outros interesses, como a paz mundial, a democracia e os direitos humanos carregada com uma singelidade e sinceridade que obviamente só podem ser encontrados em uma criança.

O contexto social em que a obra surge dá a margem de que a mesma foi criada inicialmente com o propósito de contestar o mundo e dar “cutucadas” sutis no poder, porém uma curiosidade que é pouco conhecida sobre esta obra é que ela, inicialmente deveria fazer parte de uma propaganda de eletrodomésticos, conforme o Miguel Brascó (2001) no livro Mafalda inédita revela:

“(...) Quino havia comentado comigo que andava com vontade de desenhar uma tira com crianças (...). Certo dia telefonaram da Agens publicidad e me pediram um desenhista capaz de criar uma tira em quadrinhos para ser publicada dissimuladamente em algum veículo, fazendo a promoção dos eletrodomésticos Mansfield, produzidos por Siam Di Tella. A pessoa que falou comigo chamava-se Briski (...) Brascó disse a Quino: “Quinoco, pra mim você é o indicado” e sugeriu-lhe que imaginasse uma história em quadrinhos combinando Peanuts com Blondie (...) O autor esboçou uma família-tipo, na qual podemos reconhecer Mafalda e seus pais, respeitando uma regra de ouro da agência: o nome de todos os personagens deveriam começar com “M”. Quino lembrava-se de que no romance de David Viñas, “Dar la cara”, havia uma menina chamada Mafalda; Achava um nome alegre e adotou-o para sua protagonista. (...) A agens resolveu entregar a tira ao jornal “Clarín” em troca de não cobrarem o espaço. Mas o jornal percebeu a propaganda encoberta e o acordo foi rompido. A campanha não se realizou e os produtos Mansfield – por motivos alheios a este- nunca chegaram a entrar no mercado.

Chega a ser cômica esta história e mostra, de certa forma a pretensão da indústria de se apoderar da cultura para “vender” um produto, tornando a produção cultural como um meio de se obter lucro e não um objeto de fruição e apreciação. Devemos muito a observação criteriosa do jornal “Clarín” que impediu que um dos ícones da contracultura ocidental contemporânea se tornasse mais um produto da indústria cultural, pois de outra forma, nossa querida Mafalda se tornaria não uma contestadora ferrenha dos modelos “errados” do mundo e sim apenas mais uma garota-propaganda.

Conforme explicitado anteriormente, a utilização dos quadrinhos como documentos de registro histórico e fonte de informações sobre determinada época é perfeitamente possível e aceitável do ponto de vista acadêmico, de acordo com os preceitos de novas fontes históricas proposto pelos historiadores da escola dos Annales. Como exemplo, citarei uma tira de Mafalda, contida no livro Mafalda Inédita, de QUINO (2001):

“(...) no dia 17 de outubro a China fez explodir sua primeira bomba atômica, tornando-se a quinta potência nuclear no mundo. U-Thant (presidente da ONU na época) qualificou a experiência como “lamentável”, ao passo que a agência Nova China apressou-se a acalmar os ânimos, dizendo que o artefato tinha apenas de acabar com o monopólio nuclear.

Figura 1 - Página 015 do livro Mafalda inédita, QUINO, Ed. Martins fontes, São Paulo. 2001

As figuras acima nos dão muito bem um interessante ponto de vista do contexto histórico-político-social da época, conforme explicitado no trecho acima, com a deflagração da primeira bomba nuclear pela China comunista e o crescente “medo” do holocausto nuclear que atingia todo o ocidente, classificados por Mafalda como histeria coletiva. Há outros exemplos igualmente relevantes em toda a obra de Quino, que sempre dava um jeito de cutucar a sociedade e o poder com sua sutileza ácida através de seu alter-ego, a menina Mafalda.

Mafalda também rompeu com muitos preconceitos vigentes na época, a começar por ela própria, uma menina, ser protagonista de uma história em quadrinhos, passando pela forma de Quino escrever suas tiras, sempre atuais e com as inquietações gerais, tanto nacionais como internacionais, conforme o livro Mafalda inédita revela:

“como toda pessoa que trabalha num meio de comunicação deve adaptar-se a sua modalidade jornalística e, sendo “Primeira Plana” um semanário de atualidades nacionais e internacionais, Quino tentou refletir as inquietações da época. As referências feitas nas tiras à China, a África, á America latina e a condição feminina têm a ver com o fato de então se acreditar firmemente que o terceiro mundo e a mulher conseguiriam reverter a sua situação de subjugados”.

Figura 2 - Página 016 do livro Mafalda inédita, QUINO, Ed. Martins fontes, São Paulo. 2001

A forma de Quino manifestar a crença [da época] de que a situação da mulher seria superada está na forma ácida com a qual critica o fato de sua mãe ter largado a faculdade [e o conseqüente desenvolvimento intelectual] para se dedicar a família, mostrando outra contradição da época, pois nessa época as lutas pela emancipação da mulher estavam a pleno vapor e, conseqüentemente um “abandono” da família foi surgindo, cabendo a mulher a difícil decisão de se manter dedicada e fiel a família ou se emancipar e atingir áreas que, até então eram exclusivas dos homens, como o mercado de trabalho e as posições de liderança, tanto na área financeira e produtiva como política, além de uma maior responsabilidade do homem nas questões familiares e no cuidado com a família.

Figura 3- Página 067 do livro Mafalda inédita, QUINO, Ed. Martins fontes, São Paulo. 2001

Falando sobre seu tempo, em esfera nacional ou internacional, criticando ferrenhamente os modelos de consumo e sociedade de sua época ou gritando por igualdade e pelo fim das injustiças, Mafalda se tornou um ícone da cultura de resistência do século XX, além de um importante registro histórico das contradições, anseios, problemas e [falta] de ações concretas de todo um modelo de sociedade e o continua sendo até hoje. Mais de 30 anos após o fim da publicação da tira, os assuntos abordados [e criticados] por Mafalda continuam em voga na sociedade e atualíssimos, o que nos leva a pensar se não seria à hora de uma volta da “Anti-menina dos olhos” para nos dar uns cutucões.



REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

ADORNO, Theodor W: A indústria cultural. Disponível em: < http://www.scribd.com/doc/7429346/Theodor-Adorno-A-Industria-Cultural > Acesso em 13/05/2009.

Espaço e tempo na arquitetura e HQ, Capítulo 02. Disponível em:
< http://www.scribd.com/doc/7106571/Cap-02 > Acesso em 11/05/2009.

JANOTTI, Maria de Lourdes. Fontes históricas. (org. PINSKY, Carla Bassanezi; BACELLAR, Carlos; GRESPAN, Jorge) Editora contexto, 2° Ed. Disponível em: < http://books.google.com/books?hl=pt-BR&lr=&id=NBZAQqhwy7UC&oi=fnd&pg=PA5&dq=%22Pinsky%22+%22Fontes+hist%C3%B3ricas%22+&ots=5QAUtfj8MK&sig=xkOWnjDNxxeBKZb_FlqgJFlKYSk#PPA11,M1> Acesso em 11/05/2009.

JARCEM, René Gomes Rodrigues: História das histórias em quadrinhos. Disponível em:
< http://www.historiaimagem.com.br/edicao5setembro2007/06-historia-hq-jarcem.pdf > Acesso em 11/05/2009.

JARCEM, René Gomes Rodrigues Apud DUTRA, Joatan Preis: História das histórias em quadrinhos. Disponível em:
< http://www.historiaimagem.com.br/edicao5setembro2007/06-historia-hq-jarcem.pdf > Acesso em 11/05/2009.

JUVA in OVERMUNDO: Malfalda: A anti-menina dos olhos. 2006. Disponível em < http://www.overmundo.com.br/overblog/mafalda-a-anti-menina-dos-olhos > acesso em 14/05/2009

QUINO Apud Miguel Brascó: Mafalda: Inédita. Ed. Martins fontes, São Paulo 2001, páginas 08 e 09.

QUINO: Mafalda: Inédita. Ed. Martins fontes, São Paulo 2001, páginas 13, 15, 16 e 67.

UVA Comunica, Apud A. Moles, (La Communication et les mass media, Gérard - Marabout, 1971). Mass Media. Disponível em: < http://uvacomunica.wordpress.com/2008/04/11/mass-media/ > Acesso em 11/05/2009.

WOLF, Mauro: TEORIAS DA COMUNICAÇÃO. Mass media: conceitos e paradigmas. Novas tendências. Efeitos a longo prazo. O newsmaking. Editorial Presença, 5° Ed. 1999. Disponível em:
< http://www.scribd.com/doc/6883835/TEORIAS-DA-COMUNICACAO > Acesso em 11/05/2009.



[1] Os “mass media” são ao mesmo tempo canais de difusão e meios de expressão que se dirigem não a um indivíduo personalizado, mas a um “público-alvo” definido por características socioeconômicas e culturais, em que todos os receptores são anônimos. (A. Moles, La Communication et les mass media, Gérard - Marabout, 1971).
[2] HQ é uma abreviação de História em quadrinhos.
[3] A grafia homossexualismo, que compreende que a homossexualidade é uma doença, foi utilizada até meados da década de 1970, quando foi retirada dos guias de doenças mentais, por não ser mais considerada uma doença e sim um estado de consciência humana. Neste caso, optei pela grafia utilizada na época para dar mais sentido ao texto.